Os olhos ainda fechados. A única coisa que ela sente é o dorso do pé roçando no lençol de algodão. Deve ser muito cedo, ela pensa. Não quer se mexer, só quer sentir o cheiro do seu namorado no travesseiro.

Só que lá longe, como se estivesse ouvindo um ruído fraco, soavam gritos. Desesperadores. Aconchegou-se ainda mais na cama. Puxou seu edredom branco com escritas em kanji japoneses para perto do seu rosto e segurou. Segurou forte. Que estranho esses gritos – pensou – Acho que estou dormindo ainda. Uma luz branca começou a entrar pelas pequenas frestas da persiana, clareando todo o seu quarto. A luz invadiu os seus olhos fechados e ela pensou que poderia ter sido Carlos que já estava chegando do seu plantão. Abriu bem pouquinho os olhos e percebeu que a claridade que estava ali não era eletricidade. Logo, o mundo começou a tremer. As coisas de seu quarto se debatiam levemente contra as paredes. Alguns quadros da sala caíram. Em um súbito, ela sentou-se na cama.

– Carlos!!! – gritou com medo.

Os móveis tremiam esclarecidos. Ela respirava ofegante, não entendendo nada. A luz lhe fazia fechar os olhos. Quando um estouro tão grande, tão alto invadiu as janelas da casa, fazendo, simplesmente os vidros se esfarelarem.

Gritou quase tão alto quanto o som que entrava pelas janelas já sem vidas. Ela foi jogada ao outro lado do quarto, batendo suas costas em uma estante cheia de livros. Seu único pensamento foi se esconder, mas não conseguia se mexer, pois um vento muito mais forte que o normal entrava por aqueles pequenos buracos das persianas tremulas.

Por alguns instantes eternos foi assim. Ela permaneceu ali, sem reação, apenas tentava não ser levada pelo vento e pelo som.

A claridade foi passando, o som e o vento também. Um silêncio absurdo a desnorteava. Não pensava, só olhava aos lados. Bagunça. Terra. Vidros ao chão. Era tudo que ela via em seu quarto. Aos poucos gritos cada vez mais próximos começaram a vir pela janela. Entre as frestas, ela via vermelho, pois o sol estava recém mostrando sua face. Ela ficou ali, por um bom tempo. Só vendo fumaça entrar.

Quando finalmente decidiu levantar, percebeu que a sua perna esquerda estava doendo. Cambaleou, mas não desistiu. Respirou firme e ficou em pé. Se segurando em alguns pouco móveis que ainda estavam no lugar, foi até a vidraça da cozinha, que já não existia mais. Ao passar pela sala, viu muito lixo. Móveis, sujeira, fotos: quase tudo empilhado em uma parede na mesma direção em que seu corpo foi jogado no quarto. Isso já não é mais minha casa – pensou – Nossa!

Mancando sobre papéis, fotos, guarda-chuvas, roupa, sapatos e muita areia, chegou à cozinha. E foi aí o seu maior susto. Através do imenso buraco que se tinha ali, em sua frente, de uma maneira inacreditável à sua visão, ela via um pouco mais abaixo da sua linha dos olhos, um mundo em seu estado terminal.

Pessoas mortas. Casas pegando fogo. Buracos gigantes espalhados pelo seu campo de visão. Pessoas correndo sem rumo. Casas sem telhados. Lixos formando montanhas. Pessoas se atirando de prédios altos. Coisas indescritíveis caíam do céu. Uma menina que chamava pela mãe, aos prantos, sendo atropelada por um carro em alta velocidade. O céu estava coberto de fumaça vermelha. O céu não demonstrava sua beleza. O céu também parecia estar morto.

Ela tremia, enquanto corria uma única lágrima de seu olho direito. Ela sentia medo. Ela sentia pavor. Ela não acreditava no que estava vendo.

– Não…

Ao cair na realidade, ela simplesmente se jogou na direção do telefone, esqueceu dor, esqueceu empecilhos no caminho. Tentou discar, não conseguiu, não havia linha. Lembrou do celular, não o achou. Vasculhou as coisas e achou o note, não havia internet. Óbvio. Tevê e rádio estavam quebrados e ainda por cima não tinha luz. Não sabia o que fazer, não tinha coragem pra sair de casa. Apenas sentou perto da porta de saída e chorou.

Pensou em fim do mundo. Pensou na última vez que disse que amava os seus pais. Pensou no último beijo em que deu em Carlos. Pensou no nome que poderia dar para o bebê que ninguém sabia que estava esperando. Pensou na última vez em que comeu pipoca. Pensou na última vez em que viu um filme de comédia. Pensou em seu primeiro beijo. Pensou nas mentiras em que contava para sua falecida irmã sobre ter visto dragões na sua infância. Pensou sobre nunca ter andado de asa-delta. Pensou na última vez em que se masturbou. Pensou no chiclete que roubou no mercado quando tinha treze anos. Pensou na última vez em que saiu para uma festa. Pensou na dor em que sentiu quando cortou seu braço com uma garrafa quebrada. Pensou em apocalipse. Pensou em por que uma bomba seria explodida em Porto Alegre. E chorou, chorou muito, por muitas horas.

Gritos, tiros, realidade invadiam as suas memórias. Roendo aos poucos as coisas que a faziam pensar. Quando em sua porta, com apenas um pequeno encontrão, um homem entrou em seu apartamento. Ela acreditou que era Carlos e se levantou rapidamente, cambaleando um pouco, chamando pelo seu companheiro. Quando olhou para o homem, percebeu que havia mais cinco logo atrás dele, todos armados, sujos de sangue, com feições duras, carregando vários sacos de comida e um cão, morto.

– O que vocês querem? – Ela gritou, recuando, nervosa, tombando nas coisas e mancando.

O último homem que entrava pela porta, a fechou. O homem que estava na frente de todos, não falou nada. Apenas levantou sua arma e do corredor, se ouviu o grito dela, três tiros e um deles falando que era pra economizar bala.